Roteiro

Por tudo que ainda me possa causar espanto


data: nunca fomos tão jovens

local: nas ruínas da Mesopotâmia


Por tudo que ainda me possa causar espanto


Essa frase ficou na minha cabeça um tempo, como se fosse um mantra, um sonho acordado, algo soprado por um anjo, se anjos houvessem, ou gatos em forma de anjo. Anjo pode ter qualquer forma?

4 Olhei, e eis que um vento tempestuoso vinha do Norte, e uma grande nuvem, com um fogo a revolver-se, e um resplendor ao redor dela, e no meio uma coisa como de cor de âmbar, que saía dentre o fogo.

Isso está em Ezequiel. Anjos existem em todas as culturas, esses seres alados que de certa forma protegem ou punem os mortais. A descrição dos querubins, na Bíblia, é muito esquisita - eu quase não consigo imaginar e parece que é bem inspirada em um tipo de anjo ou gênio comum nos templos da Mesopotâmia, uma criatura chamada Kirubu, um touro alado. Ouve só a continuação de Ezequiel

5 E, do meio dela, saía a semelhança de quatro animais; e esta era a sua aparência: tinham a semelhança de um homem. 6 E cada um tinha quatro rostos, como também cada um deles, quatro asas. 7 E os seus pés eram pés direitos; e as plantas dos seus pés, como a planta do pé de uma bezerra, e luziam como a cor de cobre polido. 8 E tinham mãos de homem debaixo das suas asas, aos quatro lados; e assim todos quatro tinham seus rostos e suas asas. 9 Uniam-se as suas asas uma à outra; não se viravam quando andavam; cada qual andava diante do seu rosto. 10 E a semelhança do seu rosto era como o rosto de homem; e, à mão direita, todos os quatro tinham rosto de leão, e, à mão esquerda, todos os quatro tinham rosto de boi, e também rosto de águia, todos os quatro.

Fora esses querubins monstruosos, existe toda uma hierarquia de anjos, não é só aquele anjinho da guarda fofo que eu colocava embaixo do travesseiro pra não ter pesadelos. Mas a gente não gosta de hierarquias, então isso fica pra outra vez.

Hierarquia é uma coisa que só funciona com anjo mesmo. Se anjos houvessem. Todo anjo é terrível. Todo anjo pode causar espanto.


Mas a frase, como era? Por tudo que ainda me possa causar espanto. Não sei por que pensei nela, posso ter lido em algum lugar. Às vezes mudava para outra frase. Essa, se não me engano, é de um conto do Caio Fernando Abreu - um conto mesmo, que eu li em livro lá pelos anos 90, algo com tentativa... Peraí, parei porque pode não ser isso, vocês sabem como são frases, vocês sabem o quanto a Clarice Lispector é citada, coitada, nem sabe. O que Clarice acharia do Twitter?

É isso, paro um tempo e penso anacronicamente se Clarice Lispector teria Twitter.

Clarice e Twitter jamais. Twitter e nosso tempo exigem precisão, concisão. E uma leveza que Clarice definitivamente não tem. Ou tem? Clarice não entraria numa treta no twitter porque Clarice faz parte da categoria dos seres alados, que pairam acima das nossas cabeças confusas. Clarice tinha três pares de asas. E obviamente uma cara de leão. Esfinge. Espanto - esfinge pode ser tipo um anjo, não?

Clarice era sim esfinge, mas do tipo “decifra-me e ainda assim eu te devoro”. O Caio, - olha, o Caio seria twitteiro, certeza. Também li em algum lugar que ele era uma Clarice que ouviu muito rock´n´roll e consumiu algumas drogas. Injusto, acho, mas a ele também atribuem frases aleatórias, então convém ter prudência.


Procuro o livro, naquela pilha dos livros que eu já li e não consigo doar: está ali. Grifada em lápis: não, não tenho nada contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral não tenho nada contra qualquer coisa que soe a uma tentativa. Os sobreviventes, um conto que está em Pedras de Calcutá. Li tanto esse livro.

A frase volta, é isso. Por tudo que ainda possa me causar espanto e junta: não tenho nada contra qualquer coisa que soe a uma tentativa. Já procurei as referências, queria saber por que essa frase, hoje, justo hoje, justo agora.

Justo agora porque o tempo pede espanto. O tempo é de fezes, maus poemas, alucinações e espera, dizia Drummond, sobre outro tempo mas que é este também. Olha a citação novamente.


A cabeça de quem lê muito e também escreve funciona num modo angústia. Nunca dá pra saber se estou criando mesmo ou plagiando. Ou homenageando, ou imitando. A angústia da Influência. Viram? Já fiz outra referência. E vou fazer outra, que também acontece muito. Frases de peças de teatro. Algumas que escrevi, poucas, uma tantas que já fiz, outras tantas que li. Essa eu acho que só li. O Molière, em Improviso em Versailles, diz que quando não está plagiando um autor do passado, está plagiando um autor do futuro. Claro, é um chiste. Chiste é piada.


Essa história de angústia da influência é de um crítico chamado Harold Bloom. Ele fala que, basicamente, a história da literatura se move quando um autor novo, forte, tenta criar algo novo, uma obra nova, original, que supere a pressão exercida pelo cânone de autores que o antecedem. O lance é que até a negação da influência é uma influência, e aí tudo fica freudiano demais. Freudiano, como a ideia de chiste, uma piadinha que revela um monte de conteúdos reprimidos socialmente. Ou seja, vai lá pra piada ser uma angústia tb. Mas no caso, aqui, acho que a gente está falando mesmo da piada do Molière. Tudo é plágio, seja do passado ou do futuro. Não há o novo, não há o que nos espante então? Só o novo espanta?

Mas eu prefiro tirar esse tema do lugar da angústia, e entender que na verdade, tudo que a gente fala conversa com o passado, com algo que já foi dito e a que a gente responde, e ao mesmo tempo lança uma voz ao futuro, já que não existe palavra sem alteridade, sem a expectativa de resposta do outro. Isso é Bakhtin. As frases só ficam ecoando na gente porque engancham em algum lugar para o qual elas são uma resposta. E as frases que a gente quer como nossas também são uma resposta, ou uma pergunta

Mas tá, vou voltar na frase. Aquela lá do começo. Por tudo que ainda me possa causar espanto. Acho que é porque a vida está tão dura, tão sórdida, eu fico procurando o sentido. E veio a frase. Uma tentativa, não sou contra. Uma tentativa, por tudo que ainda me possa causar espanto. Se eu disser assim, a frase já é minha? Eu queria ter um pouquinho dessa frase pra mim. O que seria aquilo que ainda pode me causar espanto? Não esse espanto triste: o espanto da guerra, o espanto da fome, o espanto da pandemia, que, meu deus, não acaba. Essa frase veio no pequeno, veio no detalhe, veio quando acordei e nem tinha aberto o olho, aquele tempo que está entre o sonho e a vida. Pronto, lembrei do Calderón de La Barca: vida é sonho.

Esse é um escritor do barroco espanhol, século XVII. Essa peça conta a história de um príncipe encarcerado que experimenta o luxo do palácio por um dia, depois dorme e acorda em sua cela, onde é convencido de que tudo não passara de um sonho. Tipo um mito da caverna meio distorcido, em que o filósofo volta à caverna e fica achando que seu passeio foi uma ilusão. Vida é sonho?

Mentira, né Calderón? Se fosse sonho, agora apareceria um mar meio esverdeado, ou talvez púrpura, anil. Algumas pessoas aleatórias, que na manhã seguinte eu me lembraria, com espanto e talvez diria, numa mensagem que soaria talvez a uma cantada: sonhei com você. Talvez no sonho teria um orelhão daqueles discados no meio do mar e eu ligaria sei lá, pro Papa. Pro Lula. Pra Monja Cohen. “ Ai que delícia, vamos morrer”.

Mas a vida é real e é aqui, onde eu sento com uma xícara de café na mão, na soleira da porta da minha casa e penso: por tudo que ainda possa me causar espanto e soe a uma tentativa.

Da soleira onde eu me sento vejo passar um pato, 14 formigas, meu gato, meu cachorro - que está velho - outro pato, tem ali uma lagarta, é tempo de goiaba, que eu nem gosto mas estou cercada delas. Borboletas gostam de goiaba, sabia? Eu também não, aprendi olhando. Ainda bem que não matei aquelas lagartas. É muito cedo. Um vento agita umas folhas na grama. Vai fazer um calor desgraçado. Acabou o pó de café.

Todo anjo é terrível. Os meus anjos não, eles têm forma de acaso. O anjo me pergunta: o Belo ainda pode nos causar espanto? Eu digo: o cantor? O anjo ri da minha brincadeira e responde: o conceito filosófico.

O anjo me pergunta: em tempos de guerra ainda cantaremos?

E eu me lembro do Carlos, que também ouvia anjos tortos:


Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

não cantaremos o ódio porque esse não existe,

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,

o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,

cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,

depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.


Não, Carlos, por aqui nascem goiabas, que são amarelas, mas corajosas; o mundo me espanta e o medo é um companheiro triste, fraco e desnecessário. Eu te amo, Carlos, mas hoje eu quero que o mundo ainda me possa causar espanto, porque o dia insiste em nascer, porque vai fazer sol e porque eu ainda amo o mundo o suficiente pra que eu faça, ainda, uma tentativa.


Um bom dia a todos. Vai ter sol

Referências

Kirubu/Kirabu

Essa figura, um híbrido de homem e touro com asas, era encontrado em vários templos da Assíria. Existia ainda um outro tipo de criatura, de homem e leão alado, que se chamava “shedu” ou “lamassu”. Tanto o meio touro quanto o meio leão eram muitas vezes colocados em pares na entrada dos templos ou palácios, como guardiões. No Museu Britânico, controvérsias à parte, eles estão na entrada da exposição permanente da Mesopotâmia. Foram encontrados no Palácio de Nimrud, do rei Assurbanipal II, e datam de 965 aC.

Se quiser dar um passeio virtual por lá, entre aqui (vale a pena, nesses tempos de viagens proibidas)


Passeio virtual no Museu Britânico

Querubim, de acordo com a iconografia tradicional cristã:

Tetramorph, afresco do século XVI, em um dos mosteiros de Meteora, na Grécia

Todo mundo deve ter encontrado a mesma dificuldade de visualizar essas criaturas multifacetadas que Ezequiel descreve. Essa simbologia de 4 seres em um (humano, leão, águia e touro), chamada TETRAMORFO, se estendeu pelo cristianismo, e cada um dos evangelistas foi associado a uma das faces: João, a águia; Mateus, o homem; Lucas, o touro e Marcos, o leão. Aliás, olha a maravilha desses detalhes da Basílica de São Marcos, em Veneza, nas imagens a seguir:

E tem ainda essa página magnífica do Book of Kells, aquela Bíblia irlandesa do ano 800, mais ou menos (onde está parte da arte celta que conhecemos):

Mas a origem do tetramorfo, antes dessa separação nos 4 evangelistas, é mais interessante ainda. A visão de Ezequiel aconteceu durante o cativeiro hebreu na Babilônia, e foi associada aos 4 signos fixos do Zodíaco, adotados dos sumérios. É claro que Ezequiel tinha contato com a iconografia desse povo mesopotâmico, os primeiros a observarem as estrelas e criarem o zodíaco. Os 4 signos representam justamente os solstícios e equinócios, marcando assim o início das 4 estações. Em uma única imagem, estaria representada então a unidade do ano.

Caio Fernando Abreu, Os Sobreviventes, Pedras de Calcutá. Companhia das Letras, 1996

Está aí o trechinho do conto do Caio Fernando Abreu que aparece nas memórias da Ana.

Se quiser ler o conto todo, pode comprar o livro, ou acessar o link no final.


[...]

Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor demais, você acreditava mesmo nisso? naquele bar infecto onde costumávamos afogar nossas impotências em baldes de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse não, meu bem, o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo aquela amante de Virginia Woolf, como era mesmo o nome da fanchona? Vita, isso, Vita Sackville-West e o veado do marido dela, ra não se erice, queridinho, não tenho nada contra veados não, me passa a vodca, o quê? e eu lá tenho grana para comprar wyborowas? não, não tenho nada contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral não tenho nada contra qualquer coisa que soe a uma tentativa. Eu peço um cigarro e ela me atira o maço na cara como quem joga um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, a velha angst, saco, mas ando, ando, mais de duas décadas de convívio cotidiano, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, ah não me venha com essas histórias de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, eu nunca tive porra de ideal nenhum, eu só queria era salvar a minha, veja só que coisa mais individualista elitista capitalista, eu só queria era ser feliz, cara, gorda, burra, alienada e completamente feliz.

[...]

Blog Caio Fernando

Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, 1945

Drummond

Drummond é uma paixão nossa. E vai aparecer por aqui muitas vezes. Só neste episódio, ele deu as caras duas vezes: em uma citação rápida de A Flor e a Náusea, que está no livro A Rosa do Povo, de 1945, e no poema Congresso Internacional do medo, que lemos no episódio, e que está no livro O sentimento do mundo, de 1940.


A Flor e a Náusea


Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?


Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.


Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.


Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.


Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.


Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.


Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.


Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.


Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do mundo, 1940

Congresso Internacional do Medo


Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

não cantaremos o ódio porque esse não existe,

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,

o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,

cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,

depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Moliére, Improviso em Versailles, 1663

Molière

Molière é uma paixão mais minha (Ana aqui), e foi o primeiro autor de quem eu li a obra inteira, ainda quando era uma adolescente. Eu citei de cabeça e não conferi, aí quando fui conferir, não está no Improviso de Versailles, então fica aqui a referência do livro como a parte inventada desse diário. Veja só: uma citação inventada sobre um chiste acerca de um plágio: fica até interessante. Quem quiser ler a obra inteira e achar a citação pode me mandar. Mas pode ser que eu tenha inventado mesmo. Ou feito com o Molière o mesmo que fazem com a Clarice e colocado na boca dele uma frase que não é dele.

O Molière, ou Jean-Baptiste Poquelin foi um dramaturgo francês do século XVII. É considerado um dos mestres da comédia. Ele também era ator de suas próprias peças. Dizem que também era diretor das peças, mas eu considero isso um pouco de anacronismo, já que essa figura do diretor é mais tardia na história do teatro. Mas de qualquer forma, tem duas coisas importantes e fascinantes sobre o Molière (tem outras mais, mas eu escolhi essas pra contar). A primeira: o grande comediante preferia as tragédias. A segunda é sobre sua morte. Ele estava apresentando a peça O Doente Imaginário, cujo personagem principal, Argan, é um hipocondríaco. Molière é que interpretava Argan. Lá pelas tantas, numa apresentação, Molière começa a passar mal em cena. Os outros atores consideraram aquilo parte de um improviso, já que ele era O DOENTE. O público gargalhava. Molière morreu em cena nessa apresentação.

Parte dessa história é inventada: na verdade ele só desmaiou e morreu horas mais tarde. Mas eu acho a parte inventada mais legal, muito mais teatral, então vou ficar com ela.

Tem um filme sobre o Molière, feito em 1978, dirigido pela Ariane Mnouchkine, do Theatre du Soleil, pra quem quiser ver uma coisa bela, engraçada e emocionante e se apaixonar pelo Molière também.

Assista aqui

Freud, O chiste e sua relação com o inconsciente, 1905

Leia aqui

Freud

Não vamos nos aventurar muito pela psicanálise e correr o risco de falar bobagens, né? Vai aqui então só uma pincelada de Freud. Nessa obra, ele tenta analisar o que está por trás dos chistes, os ditos espirituosos, aquelas piadas breves, condensadas, que envolvem em especial jogos de palavras: trocadilhos, ambiguidades, deslocamentos de sentido. E afirma que essa forma de trabalhar com a linguagem é um exemplo das formações do inconsciente, está a serviço delas. Funciona de maneira semelhante a um sonho, um ato falho, um sintoma. A especificidade do chiste é que ele é um processo social. Funciona em grupo, pois precisa de laços, que podem ser estabelecidos pela própria piada. O chiste, então, suspende temporariamente um recalque (aquilo que a gente tem que esquecer para poder estar no convívio social) Ou seja, eu e o outro, em uma intimidade, transgredimos aquele limite, deixamos aflorar uma espécie de verdade reprimida, oculta, censurada. Por isso o efeito é tão importante - se o outro riu, é um chiste, se não riu, não é, pois o laço não se formou. O riso, esse efeito, me provoca satisfação, e busco repeti-lo. Por isso eu conto a piada para um terceiro, e seu riso também me causa prazer.

Se você quiser saber mais sobre chistes, pode assistir aos dois vídeos do Christian Dunker em que ele explica essa obra de Freud (foi de onde tiramos este resuminho): Vídeo Christian Dunker

Harold Bloom, A Angústia da Influência, Imago, 1991

Bloom

Harold Bloom, que morreu em 2019, foi um professor e crítico literário estadunidense, extremamente polêmico, por isso mesmo alvo de amor e ódio. Foi um defensor do cânone literário ocidental em um momento de esfacelamento dos estudos em mil vertentes pós modernas. Por isso foi chamado de conservador, de romântico e de alheio às questões culturais do nosso tempo. À parte a polêmica, a análise literária dele criou um outro jeito de pensar a intertextualidade, ou seja, o diálogo entre textos, a maneira como um poeta cita outro, como uma espécie de batalha pelo primeiro lugar, que seria a originalidade da invenção. É isso que ele chama de Angústia da influência (ou Ansiedade, na tradução portuguesa). Nesse livro, que é o seu primeiro, ele define de que modos um poeta disputa com seu antecessor: pela continuidade, pela negação, pela repetição, etc. Em um de seus últimos livros, A anatomia da influência, ele revisita essa teoria, e chega à conclusão de que o que move os poetas não é a disputa, mas o amor, a reverência. Boa conclusão.

Mikhail Bakhtin/ Voloshinov, Marxismo e Filosofia da Linguagem, Hucitec, 1992

Bakhtin

Bakhtin foi um filósofo, linguista, teórico da literatura. Liderava um grupo que ficou conhecido entre os anos 20 e 30 como Círculo de Bakhtin, do qual fazia parte Voloshinov, que acabou publicando essa obra central dos estudos de linguística, Marxismo e filosofia da linguagem. Hoje, acredita-se que o principal autor seja mesmo Voloshinov, mas quem conhece a teoria desse grupo sabe que a questão da autoria é meio desimportante. Bakhtin ficou exilado internamente um tempão, primeiro no Cazaquistão, depois em Saransk, acusado de envolvimento em alguma atividade ilegal da Igreja Ortodoxa, mas isso nunca ficou esclarecido. Sua obra só foi de fato resgatada nos anos 60, e chegou ao Brasil no meio da ditadura militar, traduzida por vários professores da Unicamp. A tentativa de elaborar um método sociológico marxista de análise da linguagem foi uma enorme inovação na linguística. Além de teorizar sobre a linguagem, Bakhtin ficou muito conhecido por elaborar uma teoria dos gêneros do discurso, que é norteadora de todos os trabalhos com leitura e escrita nas escolas brasileiras.

Este trecho do Marxismo e Filosofia da Linguagem foi a base do que a Tati fala no episódio:


Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as. Cada inscrição constitui uma parte inalienável da ciência ou da literatura ou da vida política. Uma inscrição, como toda enunciação monológica, é produzida para ser compreendida, é orientada para uma leitura no contexto da vida científica ou da realidade literária do momento, isto é, no contexto do processo ideológico do qual ela é parte integrante.


E olhem só este outro pedaço, lindo demais (em uma tradução diferente, da Sheila Grillo, direto do russo, lançada pela Editora 34):


A importância da orientação da palavra para o interlocutor é extremamente grande. Em sua essência, a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte. Toda palavra serve de expressão ao “um” em relação ao “outro”. Na palavra, eu dou forma a mim mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da perspectiva da minha coletividade. A palavra é uma ponte que liga o eu ao outro. Ela apoia uma das extremidades em mim e a outra no interlocutor. A palavra é o território comum entre o falante e o interlocutor.

Pedro Calderón de la Barca (1600-1681) foi um dos principais dramaturgos e poetas da Espanha. Foi dramaturgo oficial da corte, e em 1651 foi ordenado sacerdote - e virou o capelão de honra do rei em 1663. Continuou escrevendo peças até sua morte, aos 81 anos.

Uma curiosidade: os cantadores repentistas do Nordeste usam exatamente o mesmo tipo de estrofe que as utilizadas por Calderón. Veja neste link o vídeo em que Ariano Suassuna fala sobre isso, resume A vida é sonho e declama os lindíssimos versos finais da peça, um monólogo do jovem príncipe aprisionado, Segismundo.

Vídeo de Ariano Suassuna

Calderón de la Barca

A vida é sonho, Hedra, 2007

estreou em 1635


É certo; então reprimamos

esta fera condição,

esta fúria, esta ambição,

pois pode ser que sonhemos;

e o faremos, pois estamos

em mundo tão singular

que o viver é só sonhar

e a vida ao fim nos imponha

que o homem que vive, sonha

o que é, até despertar.


– Sonha o rei que é rei, e segue

com esse engano mandando,

resolvendo e governando.

E os aplausos que recebe,

Vazios, no vento escreve;

e em cinzas a sua sorte

a morte talha de um corte.

E há quem queira reinar

vendo que há de despertar

no negro sonho da morte?


– Sonha o rico sua riqueza

que trabalhos lhe oferece;

sonha o pobre que padece

sua miséria e pobreza;

sonha o que o triunfo preza,

sonha o que luta e pretende,

sonha o que agrava e ofende

e no mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,

no entanto ninguém entende.


– Eu sonho que estou aqui

de correntes carregado

e sonhei que em outro estado

mais lisonjeiro me vi.

Que é a vida? Um frenesi.

Que é a vida? Uma ilusão,

uma sombra, uma ficção;

o maior bem é tristonho,

porque toda a vida é sonho

e os sonhos, sonhos são.


(tradução: Renata Pallotini)

Não sei vocês, mas a gente adora ver a caligrafia dos autores. Olha aí o autógrafo do Calderón: