Roteiro

Por tudo que ainda me possa causar espanto


data: nunca fomos tão jovens

local: nas ruínas da Mesopotâmia


Por tudo que ainda me possa causar espanto


Essa frase ficou na minha cabeça um tempo, como se fosse um mantra, um sonho acordado, algo soprado por um anjo, se anjos houvessem, ou gatos em forma de anjo. Anjo pode ter qualquer forma?

4 Olhei, e eis que um vento tempestuoso vinha do Norte, e uma grande nuvem, com um fogo a revolver-se, e um resplendor ao redor dela, e no meio uma coisa como de cor de âmbar, que saía dentre o fogo.

Isso está em Ezequiel. Anjos existem em todas as culturas, esses seres alados que de certa forma protegem ou punem os mortais. A descrição dos querubins, na Bíblia, é muito esquisita - eu quase não consigo imaginar e parece que é bem inspirada em um tipo de anjo ou gênio comum nos templos da Mesopotâmia, uma criatura chamada Kirubu, um touro alado. Ouve só a continuação de Ezequiel

5 E, do meio dela, saía a semelhança de quatro animais; e esta era a sua aparência: tinham a semelhança de um homem. 6 E cada um tinha quatro rostos, como também cada um deles, quatro asas. 7 E os seus pés eram pés direitos; e as plantas dos seus pés, como a planta do pé de uma bezerra, e luziam como a cor de cobre polido. 8 E tinham mãos de homem debaixo das suas asas, aos quatro lados; e assim todos quatro tinham seus rostos e suas asas. 9 Uniam-se as suas asas uma à outra; não se viravam quando andavam; cada qual andava diante do seu rosto. 10 E a semelhança do seu rosto era como o rosto de homem; e, à mão direita, todos os quatro tinham rosto de leão, e, à mão esquerda, todos os quatro tinham rosto de boi, e também rosto de águia, todos os quatro.

Fora esses querubins monstruosos, existe toda uma hierarquia de anjos, não é só aquele anjinho da guarda fofo que eu colocava embaixo do travesseiro pra não ter pesadelos. Mas a gente não gosta de hierarquias, então isso fica pra outra vez.

Hierarquia é uma coisa que só funciona com anjo mesmo. Se anjos houvessem. Todo anjo é terrível. Todo anjo pode causar espanto.


Mas a frase, como era? Por tudo que ainda me possa causar espanto. Não sei por que pensei nela, posso ter lido em algum lugar. Às vezes mudava para outra frase. Essa, se não me engano, é de um conto do Caio Fernando Abreu - um conto mesmo, que eu li em livro lá pelos anos 90, algo com tentativa... Peraí, parei porque pode não ser isso, vocês sabem como são frases, vocês sabem o quanto a Clarice Lispector é citada, coitada, nem sabe. O que Clarice acharia do Twitter?

É isso, paro um tempo e penso anacronicamente se Clarice Lispector teria Twitter.

Clarice e Twitter jamais. Twitter e nosso tempo exigem precisão, concisão. E uma leveza que Clarice definitivamente não tem. Ou tem? Clarice não entraria numa treta no twitter porque Clarice faz parte da categoria dos seres alados, que pairam acima das nossas cabeças confusas. Clarice tinha três pares de asas. E obviamente uma cara de leão. Esfinge. Espanto - esfinge pode ser tipo um anjo, não?

Clarice era sim esfinge, mas do tipo “decifra-me e ainda assim eu te devoro”. O Caio, - olha, o Caio seria twitteiro, certeza. Também li em algum lugar que ele era uma Clarice que ouviu muito rock´n´roll e consumiu algumas drogas. Injusto, acho, mas a ele também atribuem frases aleatórias, então convém ter prudência.


Procuro o livro, naquela pilha dos livros que eu já li e não consigo doar: está ali. Grifada em lápis: não, não tenho nada contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral não tenho nada contra qualquer coisa que soe a uma tentativa. Os sobreviventes, um conto que está em Pedras de Calcutá. Li tanto esse livro.

A frase volta, é isso. Por tudo que ainda possa me causar espanto e junta: não tenho nada contra qualquer coisa que soe a uma tentativa. Já procurei as referências, queria saber por que essa frase, hoje, justo hoje, justo agora.

Justo agora porque o tempo pede espanto. O tempo é de fezes, maus poemas, alucinações e espera, dizia Drummond, sobre outro tempo mas que é este também. Olha a citação novamente.


A cabeça de quem lê muito e também escreve funciona num modo angústia. Nunca dá pra saber se estou criando mesmo ou plagiando. Ou homenageando, ou imitando. A angústia da Influência. Viram? Já fiz outra referência. E vou fazer outra, que também acontece muito. Frases de peças de teatro. Algumas que escrevi, poucas, uma tantas que já fiz, outras tantas que li. Essa eu acho que só li. O Molière, em Improviso em Versailles, diz que quando não está plagiando um autor do passado, está plagiando um autor do futuro. Claro, é um chiste. Chiste é piada.


Essa história de angústia da influência é de um crítico chamado Harold Bloom. Ele fala que, basicamente, a história da literatura se move quando um autor novo, forte, tenta criar algo novo, uma obra nova, original, que supere a pressão exercida pelo cânone de autores que o antecedem. O lance é que até a negação da influência é uma influência, e aí tudo fica freudiano demais. Freudiano, como a ideia de chiste, uma piadinha que revela um monte de conteúdos reprimidos socialmente. Ou seja, vai lá pra piada ser uma angústia tb. Mas no caso, aqui, acho que a gente está falando mesmo da piada do Molière. Tudo é plágio, seja do passado ou do futuro. Não há o novo, não há o que nos espante então? Só o novo espanta?

Mas eu prefiro tirar esse tema do lugar da angústia, e entender que na verdade, tudo que a gente fala conversa com o passado, com algo que já foi dito e a que a gente responde, e ao mesmo tempo lança uma voz ao futuro, já que não existe palavra sem alteridade, sem a expectativa de resposta do outro. Isso é Bakhtin. As frases só ficam ecoando na gente porque engancham em algum lugar para o qual elas são uma resposta. E as frases que a gente quer como nossas também são uma resposta, ou uma pergunta

Mas tá, vou voltar na frase. Aquela lá do começo. Por tudo que ainda me possa causar espanto. Acho que é porque a vida está tão dura, tão sórdida, eu fico procurando o sentido. E veio a frase. Uma tentativa, não sou contra. Uma tentativa, por tudo que ainda me possa causar espanto. Se eu disser assim, a frase já é minha? Eu queria ter um pouquinho dessa frase pra mim. O que seria aquilo que ainda pode me causar espanto? Não esse espanto triste: o espanto da guerra, o espanto da fome, o espanto da pandemia, que, meu deus, não acaba. Essa frase veio no pequeno, veio no detalhe, veio quando acordei e nem tinha aberto o olho, aquele tempo que está entre o sonho e a vida. Pronto, lembrei do Calderón de La Barca: vida é sonho.

Esse é um escritor do barroco espanhol, século XVII. Essa peça conta a história de um príncipe encarcerado que experimenta o luxo do palácio por um dia, depois dorme e acorda em sua cela, onde é convencido de que tudo não passara de um sonho. Tipo um mito da caverna meio distorcido, em que o filósofo volta à caverna e fica achando que seu passeio foi uma ilusão. Vida é sonho?

Mentira, né Calderón? Se fosse sonho, agora apareceria um mar meio esverdeado, ou talvez púrpura, anil. Algumas pessoas aleatórias, que na manhã seguinte eu me lembraria, com espanto e talvez diria, numa mensagem que soaria talvez a uma cantada: sonhei com você. Talvez no sonho teria um orelhão daqueles discados no meio do mar e eu ligaria sei lá, pro Papa. Pro Lula. Pra Monja Cohen. “ Ai que delícia, vamos morrer”.

Mas a vida é real e é aqui, onde eu sento com uma xícara de café na mão, na soleira da porta da minha casa e penso: por tudo que ainda possa me causar espanto e soe a uma tentativa.

Da soleira onde eu me sento vejo passar um pato, 14 formigas, meu gato, meu cachorro - que está velho - outro pato, tem ali uma lagarta, é tempo de goiaba, que eu nem gosto mas estou cercada delas. Borboletas gostam de goiaba, sabia? Eu também não, aprendi olhando. Ainda bem que não matei aquelas lagartas. É muito cedo. Um vento agita umas folhas na grama. Vai fazer um calor desgraçado. Acabou o pó de café.

Todo anjo é terrível. Os meus anjos não, eles têm forma de acaso. O anjo me pergunta: o Belo ainda pode nos causar espanto? Eu digo: o cantor? O anjo ri da minha brincadeira e responde: o conceito filosófico.

O anjo me pergunta: em tempos de guerra ainda cantaremos?

E eu me lembro do Carlos, que também ouvia anjos tortos:


Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

não cantaremos o ódio porque esse não existe,

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,

o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,

cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,

depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.


Não, Carlos, por aqui nascem goiabas, que são amarelas, mas corajosas; o mundo me espanta e o medo é um companheiro triste, fraco e desnecessário. Eu te amo, Carlos, mas hoje eu quero que o mundo ainda me possa causar espanto, porque o dia insiste em nascer, porque vai fazer sol e porque eu ainda amo o mundo o suficiente pra que eu faça, ainda, uma tentativa.


Um bom dia a todos. Vai ter sol